Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
É doutor em Teologia Bíblica e mestre em Ciências Bíblicas. Na CNBB, o arcebispo presidiu a Comissão para a Doutrina da Fé durante os exercícios 2003 a 2007 e de 2007 a 2011. Membro da Academia Mineira de Letras. Foi presidente CNBB no quadriênio 2019-2023.
Canais/Redes Sociais:
|
Gramática do coração
No coração humano hospedam-se indiferenças que precisam ser adequadamente tratadas sob o risco de inesperada e elevada cobrança a se pagar pela displicência. A atenção focada apenas em estratégias políticas, econômicas e outras questões da vida humana contemporânea, não pode transcurar o que o coração de cada pessoa inscreve na sua gramática. São perigosas as reações que podem nascer das indiferenças, surpreendendo esquemas rígidos de segurança e comprometendo vidas, projetos e processos importantes. O dito sapiencial, de relevância espiritual de Jesus, na sua maestria, no Sermão da Montanha, conta muito e guarda preciosa advertência e indicação de zelo: ‘Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração’.
O tesouro de cada um é o forro do seu coração, funcionando como luz do corpo. Jesus sublinha: ‘A lâmpada do corpo é o olho: se teu olho for bom, ficarás todo cheio de luz; mas se teu olho for mau, ficarás todo em trevas. Ora, se a luz em ti é trevas, quão densas serão essas trevas.’ A força deste ensinamento e advertência ilumina a preocupação que se deve ter de qualificar o tecido do próprio coração para o exercício da solidariedade e incondicional respeito à dignidade de cada pessoa. E, assim, também priorizar e efetivar um novo estilo de vida na casa comum, por meio de mudanças e procedimentos que consigam tratar de modo diferente o meio ambiente. Por isso, é um perigo se descuidar do fenômeno das indiferenças que tomam conta dos corações enjaulados na mesquinhez e no desgosto, impedindo gestos e atitudes pela paz e nobreza no relacionamento humano.
Importa, pois, operar verificações sobre as diferentes fisionomias da indiferença em relação ao próximo. São muitos os dramas que afligem a humanidade, sendo urgente tocar os corações, não permitindo que o risco real de se ter muitas informações, trazidas pelas facilidades fascinantes dos meios e tecnologias atuais, impeça que sejam cultivadas a sensibilidade e a espiritualidade para mudar, urgentemente, circunstâncias ameaçadoras na vida comum. O combate à indiferença precisa ser alavancado pelo indispensável sentimento de compaixão, sem o olhar que permite alcançar o outro, particularmente o pobre e vulnerável, mantendo-se na estreiteza de lógicas que não adotam o perdão e a reconciliação. Tem-se muitas e variadas informações sem que, no entanto, seja produzida uma luminosa consciência solidária. Pode-se constatar uma certa anestesia da sensibilidade, convencendo corações a escolhas e a posturas que levam a consequências prejudiciais, inclusive para a própria pessoa, afetando o conjunto e a interioridade da precisada sociedade solidária. Justifica-se, facilmente, tudo, distribuindo, rancorosamente, o rol de culpas, apontando, falaciosamente, os pobres como responsáveis primeiros, justificando encastelamentos que perpetuam ódios e fechamentos às partilhas e urgente reconciliação.
Essa realidade é como mortal câncer social que justifica e permite a corrupção, a formação hermética de oligarquias, alimentando ideologias políticas perversas e destrutivas. Aí estão raízes evidentes do comprometimento da paz mundial, nas instituições e nas famílias. Tudo nasce no risco de não sentir compaixão pela humanidade sofredora. Na contramão, urge-se exercitar-se na escuta do grito surdo vindo das angústias que afligem a humanidade, pedindo e indicando a importância terapêutica de interessar-se e ocupar-se com o que pesa sobre os ombros dos outros, co-responsabilizando-se por soluções e contribuindo por atitudes solidárias e compassivas, não se pautando em mágoas, ressentimentos e na mesquinhez do próprio conforto. É evidente o risco do conforto amordaçar o coração, impedindo-o de gestos de altruísmo e o privando de sabedorias que impulsionem comprometimentos e intuições na tarefa cidadã de edificar uma sociedade mais justa e solidária. Compreende-se, neste mesmo horizonte, a incompetência social e política de tratar a casa comum a partir de um outro estilo de vida, matando-a, assim, e pagando preços altos por reações da natureza, que levam a penúrias e à escassez, a exemplo da água e dos alimentos.
Um coração indiferente é naturalmente fechado e desinteressado. É urgente o investimento para sair de um sentimento de indiferença para um coração misericordioso. Coração misericordioso por considerar o outro sempre como irmão, sem trair a fraternidade, de nenhum modo e em nenhuma circunstância. Não se pode deixar valer a síndrome de Caim para com Abel, iluminados sempre pela verdade de igual dignidade, todos à imagem e semelhança de Deus. Quando a fraternidade é quebrada, em qualquer nível ou intensidade, paga-se de muitos modos, hoje ou amanhã um alto preço. Há um chamamento à responsabilidade para com o outro, sem preconceitos e discriminações. ‘Onde está o teu irmão?’, interrogação central no episódio Caim e Abel, deve ecoar fortemente no coração de cada pessoa como dispositivo gerador de indispensável sensibilidade solidária e fraterna. É indispensável, pois, como Deus se interessa, interessar-se pelo destino do outro, não como ingerência, mas como solidariedade que qualifica relacionamentos, muda rumos e reorganiza a sociedade em outros possíveis parâmetros de convivência.
Há de se aprender, como remédio, a ser misericordioso como forro de qualidade do próprio coração, para não se tornar o indivíduo grande por feitos e projetos, mas apequenado por omitir-se na solidariedade e no empenho político de edificação da sociedade nos trilhos da justiça solidária. É preciso adotar a solidariedade com o firme e perseverante empenho pelo bem comum, aprendizagem prioritária e exercício diário, em ensinamentos formais e em práticas cotidianas, fazendo valer o princípio cristão que considera o outro sempre o mais importante, derrubando os muros do orgulho, a mesquinhez do ressentimento, seduzidos todos pela galhardia da nobreza de cada gesto, por ela alargando horizontes, apontando novos rumos e encontrando soluções.
Inscrever a solidariedade na gramática do coração é adotar um programa de vida que faz do amor e da compaixão os trilhos do próprio caminhar. Valha, e seja acolhido, o precioso convite de se ser fomentador da cultura da solidariedade e da misericórdia como combate efetivo da perniciosa e daninha indiferença. A gramática do coração é a solidariedade adotada como virtude moral e comportamento social, um caminho que pode, passo a passo, reacender luzes de esperança no horizonte nebuloso da sociedade contemporânea.